segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A Resistência, a Cultura e os Boys: Assinalando a Morte de Alfredo Tinoco


Morreu ontem mais um dos nossos Confrades. Neste caso, também político que vinha de «antes de Abril», do tempo da resistência.
Contudo, foi na condição de homem de Cultura e Ciência que se cruzou com a Confraria do Pão, acompanhado de André Michele, de origem francesa e radicado no Canadá há décadas, onde desenvolve meritório e reconhecido trabalho com os Almeríndios.
Entusiasmou-se com o que viu e viveu nessa distante tarde de Primavera de 2001 e, do alto da sua vivência universal e universalista, com a autoridade do cargo que então ocupava (Presidente do MINOM, Movimento Internacional da Nova Museologia), assinalou as potencialidades que reconhecia ao nosso Projecto para se implantar como Museu Vivo.
No ano seguinte, já Confrade, ajudou-nos a erguer o I Congresso Português de Cultura Mediterrânica, cuja Comissão Científica integrou, e no qual proferiu importante conferência, de que destacamos:

«Se olharmos à nossa volta, veremos uma seara em crescimento. Perto dela uma eira lageada, mais além o lançamento do que há-de ser um moinho de vento, do outro lado uma azenha que a força das águas há-de mover, aqui cerca de nós o forno onde se coze o pão. Neste microcosmo que é a Confraria do Pão, estão, em torno desse mesmo pão, para que a semente se transmute no pão dos homens, congregados os elementos do universo todo: terra, água, ar e fogo. Sem isto, não há pão. Sem eles não há vida.
É em torno disto e com isto que a Confraria pode e quer construir o Museu Vivo do Pão.
Antes de mais, saber da terra, cuidar dela.... O homem sempre precisou da terra e vamos precisar dela cada vez mais. Também para essa educação há-de servir o museu.
Depois, mostrar ao vivo todo o ciclo do trigo. …E há lá coisa nenhuma mais bonita e mais prenhe de futuro que o gesto largo e preciso do semeador que fecunda a terra … Este ciclo do trigo coincide, não por acaso – são ciclos de vida – com o ciclo escolar. Porque não hão-de as escolas galgar as paredes da sala de aula e vir ao Museu Vivo… podem aprender vendo e fazendo, receber uma “lição das coisas”, aprendem a amar e a valorizar a terra e aprenderem a justa dimensão do valor humano do trabalho que as quatro paredes da escola não permitem aprender. ..
Não me admira que muitos não saibam hoje o que é a entrosga de um moinho ou que não diferenciem os vários sistemas de moagem verticais e horizontais em uso nos moinhos movidos a água. O que já me causa mais admiração é que já vá havendo crianças que não saibam qual é a origem do pão que, afinal, comem todos os dias.
… Há, finalmente, que meter as mãos na massa. Há que perceber como se doseiam a farinha, a água, o sal e os fermentos para que possamos ter um pão saboroso, agradável e nutritivo, ou seja, saudável. Há que conhecer as alfaias necessárias, há que dar forma ao pão, deixá-lo fermentar o tempo exacto.
Há também que preparar o forno. Conhecer as técnicas e os processos bem como as diversas tipologias de fornos, suas vantagens e inconvenientes. Determinar a temperatura e os tempos de cozedura correctos. Também disso depende a boa qualidade do pão. Também isso é necessário aprender. E, depois, saborear o pão. Todos estes saberes cumpre ao Museu do Pão conservá-los e transmiti-los.
E quando falo aqui de saberes, na perspectiva do Museu Vivo, refiro-me evidentemente, aos saberes científicos e técnicos que temos de guardar e actualizar no Centro de Documentação, mas também aos saberes empíricos, aos saberes práticos, aos saberes-fazer …Tarefa do museu, para além de conservar os objectos, é também conservar os saberes que lhe estão associados, pô-los em colóquio, confrontá-los, disponibilizá-los a quem os quer entender.

Quem aqui esteve por ocasião da última ceifa pôde percebê-lo e experimentá-lo. O mesmo se diga do que aconteceu por ocasião da sementeira desta seara que aí está à espera de ser pão. Foi ver jovens e menos jovens aprendendo com quem detém os saberes a abrir os regos na terra e a lançar as sementes.
… É isto que se tem proposto fazer a Confraria do Pão. É, afinal, isto que temos estado aqui a fazer nestes dias de trabalhos do I Congresso da Cultura Mediterrânica – ajudar a constituir a colecção sistémica do “Museu Vivo” que neste caso teve por temas a Terra, o Homem, o Pão neste ecossistema que é o Alentejo que se enquadra e interage com e num sistema mais vasto que é o mundo mediterrânico.
É claro que este é um caminho penoso, é um método difícil, mas pleno de potencialidades.
Trata-se de divulgar e de fazer reconhecer a dignidade e as expressões e os saberes de todas as camadas da população.
Um museu nunca está acabado, está sempre em devir.
Bem hajam todos os que têm contribuído para a construção do Museu Vivo – Confraria do Pão! Bem hajam.»


A Presidência da então CCRA, ora CCDRA (Filipe Palma, actual Presidente da Câmara de Ourique, e Bento Rosado, desde há anos Presidente da Gestalqueva - Sociedade de Aproveitamento das Potencialidades das Albufeiras de Alqueva e de Pedrogão, S.A.), a quando do pagamento do já (muito) amputado apoio que concedeu ao Congresso, resolveu discriminar o recibo de despesas do Professor Alfredo Tinoco, rigorosamente idêntico aos dos demais membros da Comissão Científica, devolvendo-o por «irregularidades».
Julgámos, então, que se tratava de mera provocação à Confraria.
No momento em que o corpo do nosso Confrade repousa no «Museu da Resistência», a Benfica, aguardando a sua Cremação, amanhã, dia 17, às 13 horas, no Cemitério dos Olivais, enquanto os referidos governantes e os seus executores se banham nas praias, eventualmente dos ofshores das Caraíbas, deixamos esta homenagem ao Alfredo/Professor Tinoco: provavelmente, os «boys» e os seus mandantes, quiseram com o seu ignóbil acto (já motivo de crítica judicial condenatória) também atentar contra a dignidade com que defendeste Abril; antes e depois. O mesmo Abril de que eles se serviram para enriquecer; começando cedo, nos campos e campinhos do Alentejo. Os mesmos campos que viram jorrar o sangue das entranhas de Catarina Eufémia, donde deveria ter brotado o fruto do amor de dois jovens construtores da esperança. A mesma esperança que, companheiro, ajudaste a florir, também na Confraria. Bem hajas!

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